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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

 

 

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"A posição curvada até ao chão, os olhos postos na linha que desaparecia no caneiro do leito do rio, encoberto pelas ervas altas da margem, não muito distante do olival que termina no cimo do cabeço, junto dos muros que protegem a vila e o castelo. Assim estava o rapaz tentando pescar algum peixe para a ceia, as couves do jantar já foram há muito e souberam a pouco, sem ser visto por algum quadrilheiro que se desviasse das suas funções na passagem das barcas para se aliviar dos excessos do seu organismo. Ficaria sem a última refeição e ainda apanharia uma tareia que o deixaria cheio de derrames pelo corpo. A tarde ia a meio e o rapaz continuava compenetrado nas águas do rio e no que elas lhe poderiam facultar, quando subitamente chega aos seus ouvidos o som de várias vozes, hesitou em pôr-se numa posição diferente para observar melhor a origem de tanto ruído vindo da outra margem, em primeiro lugar estava a linha e o que nela pudesse ser aprisionado. Mas, o clamor oriundo de além Tejo, o som de disparos dos arcabuzes, demoveu o rapaz de seguir atentamente as águas, no rio, na margem sul, barcos a remos e à vela e uma escuna, esta última fortemente escoltada, aguardadas por um numeroso cortejo. Nesta altura já o rapaz se tinha esquecido da linha, do peixe e da ceia, avançava rapidamente correndo descalço pelo trilho traiçoeiro que ladeia o rio na sua margem direita na direção do pequeno cais, onde desembocava a rua que leva homens e mercadorias à vila, situada no outeiro, ouvindo desta vez o ruído destemido dos mosquetes. Dissimulado no meio da turba, nunca tinha visto nada assim, as embarcações aproximavam-se, a milícia concelhia mal continha a multidão impulsionada pela curiosidade. Os olhos do rapaz quase saltavam do seu lugar, quando um homem trajando ricas roupas, onde se destacava a coroa de ouro colocada na cabeça que lhe vangloriava a estrutura, se aproxima para montar um esbelto cavalo, animal este, bem mais alimentado que a população que aplaudia sem parar. O rapaz ouvia pela primeira vez o nome de Filipe. Entre os “vivas ao rei”, a bom som ouvia-se expressões de descontentamento por ser um rei estrangeiro, usurpador do trono de Portugal. Aí os olheiros não tinham ouvidos para tanta indecência proferida, mais difícil se tornava de espiar, ou até mesmo visualizar algum arremesso de objetos que pudessem magoar o visitante estrangeiro, atualmente rei de Portugal. As tropas que escoltavam o rei, imediatamente rodearam o cavalo, modificando qualquer possibilidade de violência. Foi assim que iniciaram o trajeto, ultrapassando o dístico PLUS ULTRA subindo a rua da Barca, localizada no interior do olival, levando atrás a multidão desvairada de sentimentos opostos, ao mesmo tempo atropelavam-se uns aos outros, cada vez que atiravam esmolas por ordem do rei Filipe II. Os caminheiros há muito que fizeram chegar a informação do desembarque do rei às autoridades da vila, que o esperava nervosamente na sede do município. O acolhimento ao rei teve honras de discursos de boas vindas e louvores e outras honrarias…"

Este e outros acontecimentos ocorreram nesta rua, outros reis em expedições de guerra, empreendimentos políticos, somente de permanência, ou mesmo fugir de epidemias em Lisboa para se instalarem nos ares mais saudáveis da vila, localizada no cabeço. Mais importante foi o facto de transitarem pessoas e bens desde sempre, Eduardo Campos, escreveu na Toponímia abrantina ser esta uma das ruas mais antigas de Abrantes. Vou acrescentar, com mais história, de pessoas, possivelmente por ela caminharam ou cavalgaram gente importante como Miguel de Cervantes, os arquitetos Fillipo Terzi e Juan de Herrera, até mesmo o engenheiro Juan-Bautista Antonelli na deslocação às Cortes de Tomar, fidalguia, duques e condes, de comércio, de objetivos militares, como refere o livro Abrantes, a vila e seu termo nos tempo dos Filipes (1580-1680) de Joaquim Candeias da Silva. O rio sempre foi uma via fluvial, a rua como o seu topónimo refere (Barca), foi sempre de grande utilidade no acesso à vila e posteriormente cidade. Ainda na Toponímia abrantina, a rua no ano de 1707 tinha 57 moradores fintados, com 12 mareantes, 1 alfaiate, 1 farinheira, 2 espadeiros, 1 sombreireiro, 4 almocreves, 1 hortelão, 1 carpinteiro, 3 carreteiros, 3 ferreiros, 1 sapateiro, 1 carvoeiro, 1 torneiro, 1 caldeireiro, 1 licenciado, 1 pescador, 1 barqueiro, 1 cortador, e 1 escrivão judicial. Portanto à altura uma rua com alguma população e variados ofícios. Mais recentemente, nos inícios dos anos 80 do século XX, a rua foi abruptamente separada para permitir novos acessos ao centro da cidade de Abrantes. Sendo alvo ainda com poucos anos de existência de uma requalificação nos troços que ficaram. Seria interessante voltar outra vez a ver a rua sem interrupção, unindo a mesma com uma passagem superior sobre estrada de vias descendente e ascendente de entrada e saída da cidade. Seria uma acessibilidade onde prevalecia o simbolismo, evocando a sua importância, a sua história, as pessoas, ricos e pobres que por ela transitaram dando fulgor e desenvolvimento à cidade no passado. Todos os que estiverem interessados em conhecer esta rua que no seu início possivelmente seria um carreiro, um caminho estreito feito pela contínua  passagem dos primeiros habitantes, pela necessidade de  pescarem nas águas do rio, na caça existente, pela frequência de caminhantes, de transitarem carros puxados por animais se transformou numa rua. Um passeio com início na margem do rio, subindo o declive, observando a envolvência ainda campestre, para terminar numa zona urbana que aos poucos se vai renovando com a recuperação de algumas casas para que as mesmas possam aguentar os próximos anos embelezando esta rua cheia de história. Ou então no sentido descendente, após a visita ao castelo, ao centro antigo, com as ruas estreitas, os largos, os cantos e recantos, terminando no rio Tejo onde a fauna e flora envolvem quem por aqui passa. Aconselho, logo pela manhã, onde o bulício natural não deixa ninguém indiferente.

 

 

 

 

 

 

 

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