Sabores do campo ...
Se bem me lembro, em miúdo andei muita vez na charneca com alguém que me levava com ele quando ia à caça. Nem sempre era necessário calcorrear os trilhos e o campo pedregoso, havia dias que não saíamos do interior do carro, estacionado num local ermo, o cano da arma a descansar no intervalo da porta ocupado pelo vidro, chapéu a tapar as sobrancelhas, como se estivesse a passar pelas brasas. Eu não parava, a vista sempre de um lado para o outro, adivinhando algum coelho ou lebre mais distraídos. Debaixo do chapéu os olhos experientes quando apanhavam o animal silvestre desatento, despertavam a tensão dentro do carro, o cano da arma imediatamente apontava, o tiro barulhento enviava o cartucho no qual os chumbos acertavam sempre nos animais. Depois a minha vez, apressado e atento ao colocar os pés para não cair, na direcção onde estava o animal sem vida, regressava feliz segurando a peça caçada. De cartucheira à cintura, onde pendiam um coelho, uma lebre, um abibe ou pombo, chegava a casa radiante como se tivesse sido eu o caçador. A canja de pombo ou do abibe reforçada com um chouriço, para lhe dar entusiasmo e calidez, um coelho guisado, uma lebre com feijão, sabores do campo que não consigo esquecer. Actualmente a caça é quase sempre em reservas, praticada de um modo massivo que não oferece nada de bom aos ecossistemas. Naquele tempo o equilíbrio, o aproveitamento de algum recurso natural para complementar a alimentação era importante. Quantas vezes aos domingos as refeições eram sustentadas pelos animais silvestres. De um momento para outro, vindo da cidade, volto aos mesmos lugares, nas viagens e andanças com letras, diariamente a percorrer as estradas, as quais algumas foram caminhos de terra batida, moldados pelos anos e pelos antepassados que os escolheram como passagem entre aldeias. A minha caça hoje são os leitores, as armas os livros, sempre apontadas aos desatentos e atentos.