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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Os aguaceiros estão de passagem, limpam as memórias que o vento deixou. Trazem apontamentos novos, ficou para traz uma página, lê-se outra e mais outra, vamos andar nisto até o tempo se cansar de nós. A tasca do Ti Zé e a mercearia com o mesmo nome, na aldeia da carreira do Mato, encerraram de vez. Talvez aguardem por outro contrato para transferirem a propriedade a outro interessado. Num lugar pequeno como este o fecho de ambos os estabelecimentos, isolou ainda mais a aldeia. A (...)
O ar fresco varre o vale, leva a companhia, traz a solidão. Separa os filhos da terra, puxa, o isolamento, o medo, o ruído do silêncio. Em breve, as folhas das árvores começarão também elas a serem levadas pelo vento, deixando estas despidas, arrefecem as mulheres e os homens no vale. Nos dias curtos, dos próximos meses, há uma árvore resistente às intempéries do inverno. Na biblioteca ambulante, as sua folhas nunca se despedem dos ramos que as prendem. Os leitores cativam as (...)
Anda ao redor da biblioteca ambulante, a ler o que está escrito na carroçaria, devagar aproxima-se da porta grande, a que permite o acesso ao novo mundo. Convidei-o a entrar, não quis, disse-me que não gostava de ler, questionou-me, é funcionário do município, respondi, sou bibliotecário ambulante. Entre, venha ver as histórias, insisti, voltou a negar, não gosto de ler, frisou. Está desconfiado, não ande, eu nas aldeias, a dar banha da cobra em vez de literatura.  Frequentou (...)
Amanheceu, sem se ver indistintamente o sol, a temperatura está a anos luz da que se fez sentir ontem com ausência de compaixão, pelo viajante das viagens e andanças, e pelos leitores. Em Alferrarede Velha, depois de uma leitora ter estado a escolher histórias, apareceu repentinamente uma mulher, tinha-a visto a pintar o muro exterior da casa da leitora, referida atrás. Bom dia jovem, disse ela, presenteando-me com uma voz alegre, e um sorriso do tamanho do mundo. Não aparentava (...)
Outra árvore está a tomar a defesa da biblioteca ambulante do sol, desta vez coube a uma anoneira, em Alferrarede Velha. Originária do Peru e Equador, o seu fruto é bastante nutricional, rico em água, com uma óptima fonte de fibra, vitaminas e minerais. Tal e qual a árvore do conhecimento, a biblioteca ambulante a proteger as pessoas, os leitores, na sombra das páginas das histórias, da impossibilidade ou falta de capacidade para lerem. Não há pior piedade do que a ausência (...)
A manhã ainda não começou a acontecer e a temperatura já a ultrapassou. Na aldeia da Carreira do Mato, a esplanada da Tasca do Ti Zé está cheia de dinamismo. A padeira estacionou atrás da biblioteca ambulante, abriu as portas, num piscar de olhos, abeiraram-se os fregueses a entregar os sacos, nos quais a padeira ia colocando o pão. Um deles trazia na mão uma história, após receber o saco com o pão, entrou para devolver a história na biblioteca ambulante. Andou por aqui cheio (...)
O vento agita os panos, nas mesas onde estão outros panos. Toalhas, lençóis, soutiens, cuecas, meias, camisolas, calças e vestidos. Conjuntos, onde nos limpamos, tapamos, usamos diariamente para estarmos confortáveis, não andarmos nus, ou expostos dos contratempos do clima. Dos olhares fulminantes, ou libidinosos. Mulheres experientes não se cansam de observar a exposição da mercadoria, mexem e remexem, contornam ao tronco. Muitos alterados pelos partos, ou outras deformações. (...)
As nuvens e a chuva distanciam-se da aldeia, na Carreira do Mato, dando lugar ao sol. Este não fica muito tempo a brilhar, pouco depois regressam outra vez, projectando violentas bátegas a caírem com um barulho ensurdecedor no tejadilho da biblioteca ambulante. A tasca do Ti Zé está vazia, a televisão transmite a emissão da manhã, ansiosa por alguém se sentar e poisar o olhar na transmissão. A incerteza meteorológica não permite que ninguém esteja sentado na esplanada como (...)
A neblina dissipou-se, deu o lugar ao sol no pano azul preparado para a pintura do dia. Em Alferrarede Velha, as bancadas dos vendedores ambulantes estão a abarrotar de roupa para vender. A roupa anda de mão em mão, colocam-na defronte das ancas, tiram a medida a olho, não serve, atiram-na para cima do que está exposto. Estão o tempo todo nisto, até acertarem na saia, nas calças, ou camisola, para estrearem ou oferecerem aos afilhados na Páscoa. Os mesmos gestos repetem-se na (...)
Os primeiros pingos de chuva começam a cair, sobre o vale, a charneca beija a planície apertada pela intromissão natural do declive. As primeiras flores de cor branca, da planta, conhecida como esteva, estão a aparecer. De um dia para o outro a charneca ficará repleta destas flores, uma página em branco onde o silêncio escreverá sobre a harmonia e a tranquilidade, a solidão sobre as ausências. Irão misturar-se com as flores amarelas predominantes no momento, as do tojo, com (...)