Receio a continuidade da biblioteca ambulante no próximo verão nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Fico assustado pela morte súbita das histórias na casa dos leitores, isto porque segundo li, a Carta de Perigosidade de Incêndio Rural prevê o impedimento das pessoas de saírem de casa em dias de alto risco de incêndio nas zonas rurais. Como eu deverão estar a padeira, o peixeiro, o merceeiro e todos os outros cujos ofícios ambulantes dependem das (...)
Março marçagão manhãs de inverno tardes de verão, têm sido assim os últimos dias nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. O azul primaveril conquistou a aldeia, os pequenos prédios a plagiarem a cor do céu estão vazios, eventualmente, nos dias de descanso, nas romarias da aldeia, abram as portas, tragam os filhos ausentes. Estes trazem outros, gente nova, diferente, articulando línguas novas, a mostrarem que a aldeia não lhes diz nada. Desenraizados (...)
Se bem me lembro, em miúdo andei muita vez na charneca com alguém que me levava com ele quando ia à caça. Nem sempre era necessário calcorrear os trilhos e o campo pedregoso, havia dias que não saíamos do interior do carro, estacionado num local ermo, o cano da arma a descansar no intervalo da porta ocupado pelo vidro, chapéu a tapar as sobrancelhas, como se estivesse a passar pelas brasas. Eu não parava, a vista sempre de um lado para o outro, adivinhando algum coelho ou lebre (...)
O tempo ingrato empurra-me da cama para enfrentar a manhã gelada, estão 0º graus Celcius no momento de partir para as viagens e andanças. Pensarão como é possível haver leitores aguardando a biblioteca ambulante, com vontade de renovar a leitura, encontrar histórias novas, estar com o viajante das viagens e andanças. Isso acontece, entram enregelados, uns com a cabeça enfiada no capuz dos casacos, cachecóis a proteger o pescoço e outros agasalhos que não deixam entrar o frio. (...)
A manhã aproxima-se do fim, está frio, a aragem aproxima-se repentinamente e afasta-se no mesmo instante, joga ao toca e foge. O sol está impotente perante este sopro dissimulado, aguardo um leitor que anda metido na horta, nunca mais se lembrou que a biblioteca ambulante tem presença marcada na sua aldeia. A conservação destas parcelas de terreno afasta-os da evidência, andam ali um bocado a falar com as plantas, acarinhando-as, ralham com as ervas invasoras, com as lagartas que (...)
Há vida na charneca, a terra traz à tona, água, um tinteiro cheio, emergindo, escorrendo por linhas esquecidas pela escassez de letras. Voltar a reescrever nas páginas ressequidas foi rápido a partir do momento em que a terra aparou e sugou esta abundância, não há mata-borrão que consiga estagnar estas palavras. As letras soltaram-se, uniram-se apalavrando a charneca e as suas gentes, a água não para de correr, a preencher cadernos em branco, poços de memórias, de segredos. (...)
O nevoeiro é um intruso silencioso a passar nos lugares estreitos da charneca, uma serpente que alastra pelo vale adiante. A biblioteca ambulante sai como a linha a deixar o buraco da agulha deste tempo vagabundo, atingindo a aldeia no topo do terreno onde crescem plantas rasteiras. Ao sol na rua principal os velhos sentados nas soleiras das portas, aquecem os ossos carcomidos pelo peso da idade, o corpo encurvado, consumidos, parecem cartão dobrado, preparado para ser metido nos (...)
A chuva tamborila nos vidros da biblioteca ambulante, desde de manhã as nuvens avançam como um exército invasor, advinhava mais cedo ou mais tarde o bloqueio total. Agora esvaziam os ventres cheios de água, trazem vida, alimentam as nascentes. Nas estradas que me levam juntamente com as histórias, ao transpormos as ribeiras somos recebidos com alegria pelas águas que deslizam. Há força suficiente para rasgarem as planícies deitadas nos vales, criarem carreiras noutros sentidos, (...)
A rua está abandonada, ao longe, um, dois, chapéus de chuva, não vão sozinhos, alguém os segura, a chuva que se manifesta de uma forma excessiva não permite grande visibilidade. Podia ser uma vassoura agigantada, o vento empurra, e a chuva varre tudo à frente. As histórias estão órfãs dos leitores, não arriscam aproximarem-se da biblioteca ambulante, esta não se deixa abater com a torrente de água. As palavras hoje são escritas a lápis de água, no vale que divide a (...)
Metida no vale a planície verde expressa liberdade, limpa a angústia da incapacidade de fugir a um mundo cada vez mais desventuroso. Ao virar da curva a estrada desemboca num espaço sem fim, luminoso, o tecido que o cobre é recente, a cooperação entre a terra e as primeiras orvalhadas teceram uma obra prima. A vontade é ficar aqui para sempre dentro desta ilusão, no país das maravilhas, correr com os coelhos e as lebres, mandriar ao sol com as lagartas, permanecer em segredo com (...)