Pela janela da casa das histórias as pessoas entram no meu olhar, ausentes, indiferentes à reunião das palavras. A curiosidade morreu no largo, a vontade sumiu-se de conhecer, de viver o momento da presença da biblioteca ambulante. Atravessam-no cabisbaixas, cansadas do tempo, delas próprias, não reagem, a rotina capturou-as definitamente. Apesar das histórias acenarem-lhes com as letras dançando à janela, continuam no caminho desprovido de conhecimento. No chão do largo, as (...)
O calor no largo do Cabrito está insuportável, o alcatrão exprime a força da temperatura, estou encurralado, o meu corpo é uma fonte de suor. Os poros assemelham-se a um crivo do chuveiro no qual as gotas incansáveis saem escorrendo nas minhas costas. Os condutores ao transitarem nos automóveis, com os vidros fechados, confortados pelo ar condicionado a protege-los da canícula, olham para mim confusos, ou admirados, da permanência da biblioteca ambulante, do viajante das (...)
Telhados deitados abaixo, um desastre que se tornou normal nas aldeias, nos núcleos absoletos da maioria das nossas cidades. Histórias desconhecidas, heranças descontinuadas, gerações interrompidas, sem representação. Há pouco alguém pediu se podia entrar na biblioteca ambulante, só queria observar, após o primeiro passo no interior, as palavras saíram-lhe naturalmente, as memórias que eu tenho disto. Continuando, disse, o senhor Diniz quando chegava à minha aldeia já (...)
Os campos amarelos e vermelhos são as ilustrações das histórias à beira rio, as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra ficam mais esclarecidas com este cerco natural. Os leitores, as pessoas, influenciam personagens das muitas histórias escritas nestes últimos tempos a viajar diariamente na biblioteca ambulante. O vento, o silêncio, a chuva e o som dos pássaros deixam indícios, puxam a escrita, estimulam o viajante das viagens e andanças a compor crónicas. (...)
As crianças barafustam no interior da biblioteca ambulante pela posse das histórias, não há sossego, passam pelas mãozinhas sem tempo para se hospedarem, são miradas do avesso, diagonalmente, ou como lhes dá mais jeito. A pequenada não consegue ainda interpretar as letras de mãos dadas umas com as outras, continuando a conviver, a repetir as visitas à biblioteca, ajudados pela professora, iniciarão um dia a leitura. Adultos e gaiatos misturados, procurando histórias, imagens (...)
Início de semana chuvoso nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, a pacatez nas actividades rurais não se altera, os animais pastam desatentos ao que os rodeia, fixam o focinho na erva e ali estão a ruminar até as barrigas estarem saciadas. A biblioteca ambulante por direito próprio faz parte do território, da paisagem campestre. Habituaram-se à presença das histórias, a sua passagem deixa no ar o cheiro da tinta acabada de imprimir as notícias nos (...)
O frio continua presente, os leitores também o atacam de frente usando as histórias como arma defensiva. Afastam este comportamento paralisante com a leitura, mantêm-se despertos, a decifrarem o conteúdo das histórias. Não param, vêm a biblioteca ambulante, abandonam tarefas, adoptam histórias, regressam novamente ao trabalho aspirando a noite chegar para cravarem os olhos nas páginas, na peugada das palavras, expectantes até terminarem a aventura. A tarde está prestes a ser (...)
A chuva deixou de ser um problema, a tarde trouxe o sol, embora cercado, engolido esporádicamente por nuvens ávidas de esconder a luz brilhante que aquece os ossos fracos, fardos de uma vida de trabalho. Não se cansam de ver o tempo a passar, sentados, de pé, apoiados nas paredes com história, segredos de gerações, habitando nas ruas que afluem no largo. A biblioteca ambulante vai e vem como as nuvens, não quer mascarar a iliteracia, regressa sempre para revelar histórias com (...)
O sol no largo do Cabrito está forte, as esplanadas dos cafés estão localizadas estrategicamente como as guaritas, vigiam quem atravessa ou permanece no espaço. Assim conseguem ter sempre gente, bebem café, fumam cigarros até à incandescência da chama. Falam sem parar, do desconhecido, das pessoas, olham o tempo a passar sem aproveitar a presença da biblioteca ambulante. Vozes imperceptíveis saem do café, querem fugir dali para fora, agarram-se aos ouvidos de quem por aqui (...)
Nas aldeias que se cruzam na passagem da biblioteca itinerante, as ruas mais importantes estão enfeitadas com fios que as atravessam perpendicularmente de um lado ao outro. Nestes, triângulos coloridos, pendurados, seguidos uns aos outros, balouçam a informar os forasteiros que a aldeia está em festa. Muitas destas ornamentações é o que fica dos festejos já realizados, sobrevivem as memórias dos dias alegres, dos filhos que estiveram presentes, dos desconhecidos que passaram (...)