Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

IMG_20240711_152034.jpg

Anda ao redor da biblioteca ambulante, a ler o que está escrito na carroçaria, devagar aproxima-se da porta grande, a que permite o acesso ao novo mundo. Convidei-o a entrar, não quis, disse-me que não gostava de ler, questionou-me, é funcionário do município, respondi, sou bibliotecário ambulante. Entre, venha ver as histórias, insisti, voltou a negar, não gosto de ler, frisou. Está desconfiado, não ande, eu nas aldeias, a dar banha da cobra em vez de literatura.  Frequentou a escola até à quarta classe, pelo gesto do braço, enquanto falava, percebi pelo movimento do membro superior, o difícil ter de ir diariamente à escola nesse tempo. Admiti, a violência física e moral exercida por professores  afectou-o, por isso não gosta de ler. Houve muitos mais que sofreram, ganharam medo de irem à escola. Não foram somente causas económicas, a precariedade das famílias, também foi pelo ensino hostil, praticado aos que tinham dificuldade em apreenderem as matérias na sala de aula. Um silêncio demasiadamente profundo até hoje, sobre a maneira de leccionar nesses tempos. Encolhemos os ombros, sentimos todos fisicamente e moralmente, foi um obstáculo sempre presente para os que se habilitaram a escolher a escola. Melhor do que o trabalho agrícola, cuja violência não seria menor para as crianças ainda de tenra idade que não conseguiram almejar o acesso à escola. Este e outros factores, contribuíram para a escassez de leitores, a leitura tal como o pão foram parentes pobres no crescimento das pessoas, nas aldeias da minha terra. Felizmente, as bibliotecas itinerantes não desistiram, continuam a percorrer distâncias ao encontro dos restantes leitores que cresceram num passado que está na história, mas não esquecido. Hoje o céu é uma biblioteca, cada nuvem que passa é uma história, é uma frase, é uma palavra, é uma letra, é um leitor. É o tempo a passar depressa, a história que se leu.