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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

25.06.24

Uma história inundada ...


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Amanheceu, sem se ver indistintamente o sol, a temperatura está a anos luz da que se fez sentir ontem com ausência de compaixão, pelo viajante das viagens e andanças, e pelos leitores. Em Alferrarede Velha, depois de uma leitora ter estado a escolher histórias, apareceu repentinamente uma mulher, tinha-a visto a pintar o muro exterior da casa da leitora, referida atrás. Bom dia jovem, disse ela, presenteando-me com uma voz alegre, e um sorriso do tamanho do mundo. Não aparentava cansaço pelo trabalho realizado a reavivar o muro da leitora. Tinha sido remunerada com dez euros, ia continuar a pintar outro muro, noutra casa. Lá foi trajando uma bata, a proteger a roupa casual, manchada com pingos de tinta branca, na direcção do muro destinado a receber a massagem do pincel espalmado. A tarde trouxe palavras alegres e leves, na estrada estreita em direcção ao Vale Zebrinho, no lugar de Negrinhos de Cima, um cão, rafeiro alentejano, desatou a correr do lado de lá da cerca da propriedade, acompanhando a biblioteca ambulante, sem parar de ladrar. As histórias, não são novidade por aqui, apesar de não estacionarem, a sua passagem é frequente. Imagino que fique um cheirinho a tinta de impressão, que algumas palavras possam soltar-se, ficando a pairar no ar. Talvez sejam estas as hipóteses que tenham despertado o cão, deixando-o eufórico de tal maneira, que o instigassem a querer agarrar a biblioteca ambulante. O vento no Vale Zebrinho está audaz, impulsionando as folhas do plátano grande, com os ouriços presos nestas, a baterem com algum estrondo na carroçaria da biblioteca ambulante, abrigada na sombra. Um ranger sem parar arrasta-se na parte de cima, semelhante a unhas de alguém furioso a rasgar páginas de uma história que não quis que acontecesse. Uma história inundada por palavras feridas, amputadas de liberdade. A mesma agilidade que as histórias possuem, deslocando-se pelas aldeias da minha terra, da entrada nas casas dos leitores. São como filhas, um vínculo institucional semelhante a uma filiação natural.